Olá, Pessoal! Hoje o post é sobre um dos livros da literatura
nacional que guardo com carinho no coração. Espero que gostem!
A primeira vez que li Olhai os Lírios do Campo, de Erico Veríssimo, foi no final de 2009. Na época, a Alaisa também estava lendo o livro, então, íamos compartilhando as impressões, com todo o cuidado de não dizer o que não devia (nem ligo pra spoiler, mas a Alaisa sim). Os personagens nos marcaram, e fez até a Alaisa decidir que se um dia tivesse uma filha, ela se chamaria Olívia (será que se mantém a decisão?).
Mas vamos ao livro! E já adianto as desculpas por ter ficado um post longo.
Olhai os Lírios do Campo foi escrito em 1938, e é considerado pelo Verissimo um marco em sua trajetória como escritor. Ele mesmo cita: “Posso afirmar que só depois do aparecimento de Olhai os Lírios do Campo é que pude fazer profissão da literatura”.
Tendo como pano de fundo a Revolução de 30, no Brasil, o livro conta a história de Eugênio Fontes, um rapaz que cresceu em meio à pobreza e privações. Seus pais fizeram todos os esforços para sustentar a família e dar educação aos dois filhos, mas Eugênio pouco soube reconhecer e honrar. Uma culpa que Eugênio levará pelo resto da vida. Há uma cena particularmente muito triste, em que junto de seus amigos “importantes”, Eugênio encontra-se com o pai na rua mas finge não conhecê-lo 😥
“À medida que progredia nos estudos e que se lhe alargava a visão do mundo, Eugênio sentia que, como um balão, ia subindo cada vez mais rumo das coisas superiores, deixando lá embaixo a família presa às suas necessidades elementares, aos seus solecismos, à sua absoluta ignorância, a uma vida que às vezes lhe parecia puramente vegetativa”.
E Eugênio leva também para a vida adulta um grande complexo de inferioridade. Em todo o tempo ele se vê humilhado, inferior, sem nenhum valor. Seja por não conhecer determinado filósofo, seja por estar vestindo uma roupa simples, seja por ser filho de um alfaiate, seja por ter um irmão bêbado. Mesmo quando encontra gente que o respeita e o valoriza, ele não consegue ver com bons olhos a consideração recebida.
No dia da sua formatura em Medicina ele começa uma amizade com Olívia, uma moça simples, sem grandes atrativos físicos. Olívia é cheia de paz, fé, sobriedade, bom senso. Tem um forte desejo de ajudar, de fazer a diferença. É uma personagem tão correta e do bem, que nos faz desacreditar da sua veracidade.
Ela se torna um refúgio para Eugênio. Uma amiga e amante que ouve suas confidências, que o incentiva a ser alguém melhor. E por ver nele uma luz que nem ele mesmo consegue enxergar, tenta a muito custo abrir seus olhos para si mesmo e para a vida.
“Mas que terá ela visto em mim? – perguntava-se ele. Que terei feito eu para merecer esse amor, essa dedicação, essa fidelidade que continua até mesmo na morte?”.
É como se Olívia exercesse um papel, muito nítido, de consciência moral, espiritual e social para Eugênio.
“Era lhe vagamente incômodo ser assim descoberto, assim adivinhado nos sentimentos mais íntimos. Ele relutava em concordar, em se dar por vencido. Mas era inútil. Os olhos de Olívia pareciam ver além de coisas físicas. E por que era que ele nunca se zangava, nunca se irritava com as observações dela, por mais diretas, cruas e contundentes que fossem? Por que era que ele não se irritava mesmo quando, com espantoso olho clínico, ela botava o dedo nas suas feridas mais profundas?”
Olívia também tenta mostrar para o incrédulo Eugênio o sentido da fé. Uma fé em Deus que se estende no amor ao próximo.
“A bondade não deve ser uma virtude passiva. No dia em que achei Deus, encontrei a paz e ao mesmo tempo percebi que de certa maneira não haveria mais paz para mim. Descobri que a paz interior só se conquista com o sacrifício da paz exterior. Era preciso fazer alguma coisa pelos outros”.
Enquanto a história de Eugênio e Olívia vai se desenrolando, vemos Eugênio exercendo a profissão de Medicina. Quando optou por essa profissão, ele acreditava que era uma forma de ajudar as pessoas de origem pobre. Mas logo se mostra a verdadeira razão. Ele sente repulsa ao atender os doentes, ao entrar em casa de gente pobre, em se ver ganhando pouco tostões, sem crescer na vida e na carreira. E percebe que a escolha foi mais por ajudar a si mesmo, ser importante, do que por pensar no outro. É nessa frustração na medicina que vamos percebendo como Eugênio tenta mascarar suas verdadeiras intenções.
E é numa moça rica que vê a oportunidade de mudar de vida. Eunice Cintra cativa Eugênio, que se sente atraído pela sua beleza e pela beleza de seu mundo. Para ele, fica muito claro o que fazer: casar-se. E chega a ser engraçado como vemos que, apesar dele se sentir apaixonado, ele reconhece o verdadeiro motivo de tal decisão: mudar sua vida. Puro interesse!
Eugênio conta a Olívia sobre sua decisão por carta, mas quando chega o momento da verdade dita cara a cara, vemos Eugênio lutando contra si. É um momento tenso e angustiante, e ficamos na expectativa de que ele voltará atrás.
“Contemplava Olívia. O luar lhe batia em cheio no rosto. Ela era bela, duma beleza que nada tinha de agressivo, mas que jazia escondida como um tesouro; era serena e possuía algo que fazia pensar nas coisas eternas e imutáveis. Por que ele não a amava mais? Por que não abandonava Eunice e tudo mais para se entregar por inteiro à Olívia?”
Olha, fiquei muito brava com Olívia. Realmente acho que ele devia ter sido menos… Olívia. Ela devia ter dito a Eugênio que o amava, e que mais nada importava. Que eles enfrentariam a vida juntos. Mas não foi o que fez. Em certa ocasião, alguns anos depois, Eugênio questiona Olívia por que ela não “lutou” por eles. Ela se explica: “Se eu te retivesse aquela noite tu passarias o resto da vida amargurado e arrependido, julgando que tua felicidade estaria nesse outro mundo em que hoje vives”.
Faz sentido. Há tombos que precisamos tomar, há decisões erradas que precisamos fazer… tudo para que possamos aprender e seguir um melhor caminho. É como se fossem feridas necessárias para nosso corpo e alma. Mas ainda assim, acho que se naquela noite tivessem lutado pelo que realmente queriam, muita dor teria sido evitada.
Pois bem. Eugênio casa-se com Eunice, e Olívia vai embora para outra cidade, rompendo contato com Eugênio.
Mas rapidamente Eugênio percebe o tamanho do seu erro. O casamento não se tornou sua salvação, pelo contrário. É um casamento que evidencia as diferenças existentes, que o angustia ao extremo. Ele sabe que falta algo mais, que precisa de mais!
“No fim de contas que é ele ao cabo de tantas crueldades, de tanta agitação, de tantos conflitos? Nada. Um homem medíocre que, tendo procurado o sucesso através dum casamento rico, acabou encontrando nele apenas as mesmas inquietudes e incertezas do tempo de pobreza, a antiga e dolorosa sensação de inferioridade. Hoje ele é simplesmente o marido de Eunice Cintra”.
No entanto, sair do passo “saber” para o passo “fazer algo a respeito” exigirá muito esforço de Eugênio, um personagem até então acomodado e covarde. Será necessário outros golpes do destino para que ele consiga agir.
“O que havia por enquanto era a deplorável carne sem vontade que amava o conforto e se negava a desprender-se das coisas que lhe proporcionavam gozo, bem-estar”.
É na ausência de Olívia, mas com seus pensamentos e bondade constantemente presente, que Eugênio começa a dar os passos a sua liberdade. Sim, ele precisou se libertar das convicções materiais, da apatia, da insensibilidade.
“A vida deve ter um sentido. Agora ele começa a adivinhar nela contornos mais lógicos, o princípio dum desenho nítido. Ser bom e ser forte na bondade, fugir à violência e à ambição desmedida, ter olhos para a profunda beleza das coisas, ser às vezes como uma criança que está a todo o instante redescobrindo o mundo”.
Eugênio, enfim, começa a dar um jeito em sua vida, voltando inclusive a exercer a medicina, mas agora de corpo e alma. E assim, chegamos à parte final do livro. Um pouco mais extensa, ela trata principalmente de diversos casos e vidas que o Dr Eugênio Fontes, em companhia do amigo Dr Seixas, cuida. É nessa parte do livro que vemos Eugênio amadurecendo, se humanizando, se transformando no Eugênio que tanto Olívia acreditou.
“Quando os clientes saíram, Eugênio escancarou a janela, sorveu demoradamente o ar fresco da tarde. De certo modo se sentia alegre. Começava a tomar a vida pelos ombros e tenta beijá-la na face, como lhe aconselhava Olívia. Era um beijo de sacrifício que ele dava ainda com alguma repugnância, num desfalecimento de medo, violentando a sua natureza mais íntima. Mas havia nesse beijo um estranho elemento de fascínio. E ele sabia – se sabia! – que um dia, não muito remoto, ele ainda beijaria com amor essa mesma vida incoerente , sórdida, brutal e apesar disso, ou talvez por isso mesmo, bela”.
Olhai os Lírios do Campo é uma história bela. Ela mostra realidades, inquietações, reflexões. Ao mesmo tempo que queria sacudir o Eugênio, gritar para ele sair de seu mundinho, eu também quis abraçá-lo. Porque muitas vezes vi nele um adulto que trouxe as marcas da criança maltratada, que não soube apreciar o valor de quem estava presente enquanto era tempo, que não sabe para onde está indo.
Porque eu também sou “Eugênio” em muitos momentos da minha vida! Tenho medo do futuro, de ter errado feio no passado, de não estar onde deveria estar nesse presente.
E aí, apenas preciso me lembrar de que “a vida começa todos os dias” e de que há Deus cuidando de mim: “Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas? E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados, acrescentar um côvado à sua estatura? E, quanto ao vestuário, por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam; E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles”. Mateus 6:26-29
Outras coisas belas que a história reforçou no meu coração:
– Tem gente que nos põe para baixo. Tem gente que nos põe para cima, mesmo quando nos diz o quanto somos “baixos”. Ao lado de que tipo de gente quer estar? Que tipo de gente deseja ser?
– Muitas das nossas complexidades são irreais, infundadas. Nem sempre as pessoas estão nos olhando “torto”. Muitas vezes somos nós que distorcemos a forma como o outro nos vê.
– Reforço ao que escrevi nesse outro post, sobre a importância das pequenas coisas. Eugênio não pode mudar o cenário da saúde publica em todo o país, mas tinha nas mãos a possibilidade de fazer a diferença em cada atendimento prestado.
– O amor é raro. E deixá-lo escapar pode ter resultados irreversíveis.
– Um trabalho digno sempre merecerá respeito e louvor. Sobre esse tema, compartilho aqui uma reflexão que fiz ao pensar no valor que meu pai me ensinou sobre o trabalho.
– Pessoas são mais importantes do que coisas. Sempre. Mudar essa ordem traz tristes consequências para todos.
Bem, é isso. Terminei a releitura desse livro feliz.
“Felicidade é essa certeza de que a nossa vida não está se passando inutilmente“
Ficha Técnica
Olhai os Lírios do Campo
Autor: Erico Verissimo
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2005
Pág: 288
ISBN: 8535906096